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sexta-feira, 25 de abril de 2025

Ética e a Metafísica dos Costumes: Contrastes entre a Filosofia Moderna e a Filosofia Clássica




Por: Luis Genaro Ladereche Fígoli (Mestre Moshe 33°)

A discussão sobre ética e a metafísica dos costumes é um dos pilares centrais da filosofia em todas as suas épocas. Enquanto a filosofia clássica estabeleceu as bases do pensamento ético a partir de uma perspectiva teleológica e essencialista, a filosofia moderna propôs um rompimento com essas abordagens, inaugurando uma visão mais subjetiva, racionalista e universalista. Este artigo analisa os principais contrastes entre essas duas abordagens, destacando como a visão moderna, especialmente em Kant, se diferencia da visão clássica representada por filósofos como Platão e Aristóteles.

 

A Ética Clássica: Virtude e Finalidade

Na filosofia clássica, ética e metafísica estavam intimamente conectadas a uma visão teleológica do mundo. Para Platão[1], a ética estava alicerçada na ideia do “Bem” como a realidade suprema. No mito da caverna[2], por exemplo, o filósofo sugere que o caminho ético é o da ascensão do mundo sensível ao mundo inteligível, culminando na contemplação do Bem em si. Nesse contexto, a virtude é a adequação da alma humana à ordem universal, guiada pela razão.

Aristóteles[3], por sua vez, desenvolve uma ética da virtude fundamentada na ideia de que todo ser possui uma finalidade intrínseca (telos). Para ele, o fim último da vida humana é a eudaimonia (felicidade ou florescimento), alcançada por meio da prática das virtudes. Essas virtudes, como a coragem, a prudência e a justiça, são hábitos que permitem ao indivíduo viver de acordo com sua natureza racional. Na visão aristotélica, a ética está profundamente ligada à metafísica, pois compreender a essência e o propósito de algo é essencial para determinar como ele deve agir.

Em suma, na filosofia clássica, a ética é objetiva, baseada na ideia de que há uma ordem universal e natural que define o bem e o mal. O ser humano ético é aquele que harmoniza suas ações com essa ordem, guiado pela razão e pela busca da virtude.

 

A Revolução da Filosofia Moderna: Kant e a Metafísica dos Costumes

Com a modernidade, especialmente a partir de Descartes[4], há uma ruptura com a metafísica clássica. A filosofia moderna desloca o foco da essência das coisas para o sujeito cognoscente. No campo ético, Immanuel Kant[5] representa a culminação desse movimento ao propor uma ética fundamentada na razão prática e na autonomia do sujeito.

Na obra "Fundamentação da Metafísica dos Costumes", Kant rejeita a ética teleológica e qualquer sistema ético baseado em consequências ou inclinações. Em vez disso, ele apresenta o conceito de imperativo categórico, que estabelece que uma ação é moralmente correta se puder ser universalizada, ou seja, se a máxima que a orienta puder valer como uma lei universal.

A principal inovação kantiana é a separação entre ética e qualquer forma de interesse subjetivo ou metafísico tradicional. Para Kant, a moralidade não deriva de uma ordem cósmica ou de uma finalidade natural, mas da própria capacidade racional do sujeito de legislar para si mesmo. A autonomia da vontade é o fundamento da moralidade, e a liberdade é vista como a capacidade de agir de acordo com a razão, e não com as inclinações.

Essa abordagem também redefine a metafísica dos costumes: em vez de buscar um fundamento metafísico na ordem do cosmos, Kant busca na estrutura da razão humana o princípio universal da moralidade. Assim, a ética moderna kantiana é formal, universalista e deontológica, em contraste com a ética substancial e teleológica da filosofia clássica.

 

Contrastes Fundamentais

1. Teleologia versus Universalismo Formal

Na filosofia clássica, a ética é teleológica, ou seja, está orientada para um fim último (o Bem, no caso de Platão, ou a eudaimonia, no caso de Aristóteles). Já na filosofia moderna, especialmente em Kant, a ética não se baseia em uma finalidade externa, mas em princípios formais e universais da razão.

2. Objetividade Metafísica versus Subjetividade Racional

Enquanto a ética clássica fundamenta-se em uma ordem objetiva da realidade (a metafísica do ser), a ética moderna desloca essa fundamentação para a subjetividade racional. Em Kant, a moralidade não depende do que "é" (ser), mas do que "deve ser" (dever), conforme determinado pela razão prática.

3. Virtude versus Dever

Na ética clássica, a ênfase está na formação do caráter virtuoso, desenvolvido ao longo do tempo por meio de hábitos. Na ética kantiana, o foco está na ação conforme o dever, independentemente das inclinações ou do caráter do agente.

4. Harmonia com a Natureza versus Autonomia da Vontade

Para os clássicos, o ser humano é ético quando vive em harmonia com sua natureza e com a ordem cósmica. Para Kant, a moralidade é uma questão de autonomia: o indivíduo é ético quando age de acordo com a lei que ele próprio, enquanto ser racional, legisla.

 

Conexões e Limites

Apesar das diferenças marcantes, é possível traçar alguns pontos de continuidade entre as duas abordagens. Ambas reconhecem a centralidade da razão na ética: enquanto os clássicos veem a razão como o guia para a virtude, os modernos a veem como o fundamento da moralidade. Além disso, ambos os paradigmas compartilham a busca por um fundamento universal para a ética, ainda que divirjam quanto à sua natureza.

Por outro lado, as críticas a ambas as perspectivas também são significativas. A ética clássica foi criticada por sua dependência de uma visão metafísica que nem sempre é compatível com a ciência moderna. Já a ética kantiana é frequentemente acusada de ser excessivamente formal e desconectada das complexidades da experiência humana e das relações sociais.

 

Considerações Finais

A transição da ética clássica para a moderna representa uma mudança profunda no modo como os filósofos entendem a relação entre o homem, a moralidade e o cosmos. Enquanto a filosofia clássica busca na ordem natural e na finalidade do ser humano o fundamento da ética, a filosofia moderna encontra esse fundamento na racionalidade e na autonomia do sujeito.

Esses contrastes não apenas revelam as transformações do pensamento filosófico ao longo da história, mas também lançam luz sobre os desafios contemporâneos da ética, que continuam a oscilar entre visões universalistas e subjetivistas, entre a busca por fundamentos objetivos e a valorização da liberdade individual. A reflexão sobre ética e a metafísica dos costumes, portanto, permanece tão relevante hoje quanto era nos tempos de Platão, Aristóteles e Kant.



[1] Platão (Atenas 428/427– Atenas, 348/347 a.C.) foi um filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga, autor de diversos diálogos filosóficos e fundador da Academia em Atenas, a primeira instituição de educação superior do mundo ocidental. Ele é amplamente considerado a figura central na história do grego antigo e da filosofia ocidental, juntamente com seu mentor, Sócrates, e seu pupilo, Aristóteles. Platão ajudou a construir os alicerces da filosofia natural, da ciência e da filosofia ocidental, e também tem sido frequentemente citado como um dos fundadores da religião ocidental, da ciência e da espiritualidade.

[2]alegoria da caverna, também conhecida como parábola da cavernamito da caverna ou prisioneiros da caverna, é uma alegoria de intenção filósofo-pedagógica, escrita pelo filósofo grego Platão. Encontra-se na obra intitulada A República (Livro VII), e pretende exemplificar como o ser humano pode se libertar da condição de escuridão, que o aprisiona, por meio da luz da verdade, em que o filósofo discute sobre teoria do conhecimento, linguagem, educação e sobre um estado hipotético.

[3] Aristóteles (Estagira384 a.C. – Atenas322 a.C.) foi um filósofo e polímata da Grécia Antiga. Ao lado de Platão, de quem foi discípulo na Academia, foi um dos pensadores mais influentes da história da civilização ocidental. Aristóteles abordou quase todos os campos do conhecimento de sua época: biologiafísicametafísicalógicapoéticapolíticaretóricaética e, de forma mais marginal, a economia. A filosofia, definida como "amor à sabedoria", passou a ser compreendida por Aristóteles em sentido mais amplo, buscando se tornar uma ciência das ciências. Embora o estagira tenha escrito muitos tratados e diálogos formatados para a publicação, apenas cerca de um terço de sua produção original sobreviveu.

[4] René Descartes (La Haye en Touraine, 31 de março de 1596 – Estocolmo, 11 de fevereiro de 1650) foi um filósofo, físico e matemático francês.[1] Durante a Idade Moderna, também era conhecido por seu nome latino Renatus Cartesius. Notabilizou-se sobretudo por seu trabalho revolucionário na filosofia e na ciência, mas também obteve reconhecimento matemático por sugerir a fusão da álgebra com a geometria - fato que gerou a geometria analítica e o sistema de coordenadas que hoje leva o seu nome. Por fim, foi também uma das figuras-chave na Revolução Científica.

[5] Immanuel Kant (Königsberg, 22 de abril de 1724 – 12 de fevereiro de 1804) ou Emanuel Kant foi um filósofo alemão (nativo do Reino da Prússia) e um dos principais pensadores do Iluminismo. Seus abrangentes e sistemáticos trabalhos em epistemologia, metafísica, ética e estética tornaram-no uma das figuras mais influentes da filosofia ocidental moderna. Em sua doutrina do idealismo transcendental, Kant argumentou que o espaço e o tempo são meras "formas de intuição" que estruturam toda a experiência e que os objetos da experiência são meras "aparências". A natureza das coisas como elas é em si mesmas é incognoscível para nós. Em uma tentativa de contrariar o ceticismo, ele escreveu a Crítica da Razão Pura (1781/1787), sua obra mais conhecida. Kant traçou um paralelo com a revolução copernicana em sua proposta de pensar os objetos dos sentidos em conformidade com nossas formas espaciais e temporais de intuição e as categorias de nosso entendimento, de modo que tenhamos conhecimento a priori desses objetos.

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sábado, 7 de dezembro de 2024

O SONHO NA FILOSOFIA E NA CIÊNCIA - Uma Perspectiva Interdisciplinar

 


O SONHO NA FILOSOFIA E NA CIÊNCIA - Uma Perspectiva Interdisciplinar

Por M.´. I.´. Luis Genaro Ladereche Figoli (Moshe)

G.´. 33°

Estaria a consciência e a subconsciência confinada dentro do cérebro físico, e o sonho um subproduto dela???

Resumo

O sonho é um fenômeno que intriga a humanidade desde tempos imemoriais. Na filosofia, ele foi frequentemente abordado como um tema epistemológico e metafísico, enquanto na ciência, especialmente a partir do século XIX, ele passou a ser estudado sob uma perspectiva neurocientífica e psicológica. Este artigo explora o conceito de sonho na filosofia, destacando contribuições de pensadores como Platão, Aristóteles, Descartes e Freud, e analisa as descobertas científicas que moldaram nossa compreensão moderna do tema, como os estudos sobre o sono REM. Por fim, reflete-se sobre os esforços contemporâneos para integrar as abordagens filosóficas e científicas no entendimento dos sonhos.

Introdução

Os sonhos têm sido objeto de reflexão desde a antiguidade, levantando questões sobre a natureza da mente, a realidade e a imaginação. Na filosofia, os sonhos frequentemente desafiaram os limites do conhecimento, servindo como ponto de partida para questionamentos sobre a verdade e a existência. Paralelamente, a ciência tem buscado descrever os mecanismos neurobiológicos que geram os sonhos. Este artigo propõe uma análise interdisciplinar do sonho, considerando perspectivas filosóficas e científicas de forma integrada.

A influência da cultura na interpretação dos sonhos é um tema amplamente discutido na literatura sobre o fenômeno onírico.

Ao longo da história, diferentes culturas e tradições desenvolveram distintas abordagens e significados para os sonhos, refletindo suas visões de mundo, crenças e valores sociais.

Por exemplo:

Na tradição xamânica de diversos povos indígenas, os sonhos são vistos como uma forma de comunicação com o mundo espiritual e sobrenatural, muitas vezes possuindo um caráter premonitório ou de revelação.

Na cultura chinesa tradicional, os sonhos são interpretados com base no sistema de cosmologia yin-yang e nos princípios da medicina tradicional chinesa, relacionando-os ao equilíbrio de energias no corpo e no universo.

Na psicanálise freudiana, oriunda da cultura ocidental, os sonhos são vistos como a realização disfarçada de desejos inconscientes, refletindo a dinâmica psicológica do indivíduo.

Já na tradição budista, os sonhos são considerados manifestações da mente ilusória e da natureza impermanente da realidade, servindo como um meio de alcançar a iluminação.

Essas diferenças culturais na interpretação dos sonhos refletem não apenas as cosmologias e os sistemas de crenças de cada sociedade, mas também as formas de perceber e organizar a experiência humana. Assim, a cultura desempenha um papel fundamental na atribuição de significados aos fenômenos oníricos.

 

 

O SONHO NA FILOSOFIA

A filosofia explorou os sonhos sob diferentes óticas, principalmente no que diz respeito à epistemologia e à ontologia.

Platão e Aristóteles

Para Platão, os sonhos eram manifestações da alma, frequentemente relacionadas à irracionalidade. Na "República", ele argumenta que, durante os sonhos, as paixões e os desejos reprimidos emergem, revelando aspectos ocultos da nossa psique (Platão, 2007). Por outro lado, Aristóteles, em "Sobre os Sonhos", abordou o tema de forma mais naturalista, sugerindo que os sonhos eram produtos da atividade sensorial residual no cérebro durante o sono (Aristóteles, 2006). Ele foi um dos primeiros a propor uma explicação fisiológica para os sonhos, separando-os do campo meramente espiritual.

Descartes e o Ceticismo

No racionalismo cartesiano, os sonhos desempenham um papel crucial no questionamento da certeza do conhecimento. Em suas "Meditações Metafísicas", Descartes utiliza o sonho como exemplo para argumentar que os sentidos podem ser enganosos, levando-o a duvidar de toda a experiência sensorial (Descartes, 2001). O famoso "argumento do sonho" levanta a possibilidade de que toda a nossa percepção da realidade possa ser um sonho, destacando a fragilidade da confiança nos sentidos.

Freud e o Inconsciente

Com Sigmund Freud, os sonhos ganharam uma nova dimensão no campo da psicanálise. Em "A Interpretação dos Sonhos", Freud (1996) argumenta que os sonhos são a via régia para o inconsciente, revelando desejos reprimidos e conflitos internos. Ele propôs que os sonhos possuem um conteúdo manifesto (aquilo que é lembrado) e um conteúdo latente (os desejos inconscientes). Essa abordagem marcou uma ruptura com explicações filosóficas e científicas anteriores, introduzindo o sonho como ferramenta terapêutica e objeto de análise psicológica.

 

O SONHO NA CIÊNCIA

Com o avanço das neurociências, os sonhos passaram a ser estudados como fenômenos biológicos e psicológicos.

A Descoberta do Sono REM

A descoberta do sono REM (Rapid Eye Movement) na década de 1950, por Eugene Aserinsky e Nathaniel Kleitman, revolucionou o estudo dos sonhos (Aserinsky & Kleitman, 1953). Durante o sono REM, o cérebro apresenta uma intensa atividade elétrica, semelhante à da vigília, e é nesse estágio que a maior parte dos sonhos vívidos ocorre. Essa descoberta permitiu correlacionar os sonhos com processos neurofisiológicos, deslocando as explicações puramente psicológicas.

A Neurociência dos Sonhos

Pesquisadores como Allan Hobson e Robert McCarley propuseram teorias baseadas na atividade cerebral. A "hipótese da ativação-síntese", de Hobson e McCarley (1977), sugere que os sonhos são produtos da tentativa do cérebro de dar sentido à atividade neural aleatória durante o sono REM. Por outro lado, Mark Solms (1997) defendeu a importância do córtex pré-frontal na geração de sonhos, enfatizando o papel das emoções e da motivação.

Psicologia Cognitiva

Além da neurociência, a psicologia cognitiva também contribuiu para o estudo dos sonhos. Pesquisadores como Rosalind Cartwright (2010) destacaram o papel dos sonhos na regulação emocional, sugerindo que eles ajudam a processar experiências traumáticas e a consolidar memórias.

 

FILOSOFIA E CIÊNCIA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL

Embora a filosofia e a ciência muitas vezes adotem abordagens distintas, o estudo dos sonhos revela pontos de convergência. Questões levantadas por filósofos, como a relação entre sonhos e realidade, continuam sendo relevantes para cientistas que investigam os mecanismos neurais e psicológicos dos sonhos. Além disso, a ideia freudiana de que os sonhos têm significados ocultos encontra ressonância em estudos contemporâneos sobre a relação entre sonhos e emoções.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sonho permanece como um campo fértil para o diálogo entre filosofia e ciência. Enquanto a filosofia levanta questões fundamentais sobre a natureza da mente e da realidade, a ciência oferece ferramentas para investigar os mecanismos subjacentes aos sonhos. No futuro, a integração entre essas abordagens poderá ampliar nossa compreensão sobre a mente humana e suas manifestações oníricas.

 

Referências

Aristóteles. (2006). Sobre os Sonhos. São Paulo: Editora Martin Claret.

Aserinsky, E., & Kleitman, N. (1953). "Regularly occurring periods of eye motility, and concomitant phenomena, during sleep". Science, 118(3062), 273-274.

Cartwright, R. (2010). The Twenty-four Hour Mind: The Role of Sleep and Dreaming in Our Emotional Lives. Oxford: Oxford University Press.

Descartes, R. (2001). Meditações Metafísicas. São Paulo: Editora Martins Fontes.

Freud, S. (1996). A Interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro: Imago.

Hobson, J. A., & McCarley, R. W. (1977). "The Brain as a Dream State Generator: An Activation-Synthesis Hypothesis of the Dream Process". American Journal of Psychiatry, 134(12), 1335-1348.

Platão. (2007). A República. São Paulo: Editora Martins Fontes.

Solms, M. (1997). The Neuropsychology of Dreams: A Clinico-Anatomical Study. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates.

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