Por: Luis Genaro Ladereche Fígoli (Mestre Moshe 33°)
A discussão sobre ética e a metafísica dos costumes é um dos pilares centrais da filosofia em todas as suas épocas. Enquanto a filosofia clássica estabeleceu as bases do pensamento ético a partir de uma perspectiva teleológica e essencialista, a filosofia moderna propôs um rompimento com essas abordagens, inaugurando uma visão mais subjetiva, racionalista e universalista. Este artigo analisa os principais contrastes entre essas duas abordagens, destacando como a visão moderna, especialmente em Kant, se diferencia da visão clássica representada por filósofos como Platão e Aristóteles.
A Ética Clássica: Virtude e
Finalidade
Na filosofia clássica, ética e
metafísica estavam intimamente conectadas a uma visão teleológica do mundo.
Para Platão[1],
a ética estava alicerçada na ideia do “Bem” como a realidade suprema. No mito
da caverna[2],
por exemplo, o filósofo sugere que o caminho ético é o da ascensão do mundo
sensível ao mundo inteligível, culminando na contemplação do Bem em si. Nesse
contexto, a virtude é a adequação da alma humana à ordem universal, guiada pela
razão.
Aristóteles[3], por sua vez, desenvolve
uma ética da virtude fundamentada na ideia de que todo ser possui uma
finalidade intrínseca (telos). Para ele, o fim último da vida humana é a
eudaimonia (felicidade ou florescimento), alcançada por meio da prática
das virtudes. Essas virtudes, como a coragem, a prudência e a justiça, são
hábitos que permitem ao indivíduo viver de acordo com sua natureza racional. Na
visão aristotélica, a ética está profundamente ligada à metafísica, pois
compreender a essência e o propósito de algo é essencial para determinar como
ele deve agir.
Em suma, na filosofia
clássica, a ética é objetiva, baseada na ideia de que há uma ordem universal e
natural que define o bem e o mal. O ser humano ético é aquele que harmoniza
suas ações com essa ordem, guiado pela razão e pela busca da virtude.
A Revolução da Filosofia
Moderna: Kant e a Metafísica dos Costumes
Com a modernidade,
especialmente a partir de Descartes[4], há uma ruptura com a
metafísica clássica. A filosofia moderna desloca o foco da essência das coisas
para o sujeito cognoscente. No campo ético, Immanuel Kant[5] representa a culminação
desse movimento ao propor uma ética fundamentada na razão prática e na
autonomia do sujeito.
Na obra "Fundamentação
da Metafísica dos Costumes", Kant rejeita a ética teleológica e
qualquer sistema ético baseado em consequências ou inclinações. Em vez disso,
ele apresenta o conceito de imperativo categórico, que estabelece que
uma ação é moralmente correta se puder ser universalizada, ou seja, se a máxima
que a orienta puder valer como uma lei universal.
A principal inovação kantiana
é a separação entre ética e qualquer forma de interesse subjetivo ou metafísico
tradicional. Para Kant, a moralidade não deriva de uma ordem cósmica ou de uma
finalidade natural, mas da própria capacidade racional do sujeito de legislar
para si mesmo. A autonomia da vontade é o fundamento da moralidade, e a
liberdade é vista como a capacidade de agir de acordo com a razão, e não com as
inclinações.
Essa abordagem também redefine
a metafísica dos costumes: em vez de buscar um fundamento metafísico na ordem
do cosmos, Kant busca na estrutura da razão humana o princípio universal da
moralidade. Assim, a ética moderna kantiana é formal, universalista e
deontológica, em contraste com a ética substancial e teleológica da filosofia
clássica.
Contrastes Fundamentais
1. Teleologia versus
Universalismo Formal
Na filosofia clássica, a ética
é teleológica, ou seja, está orientada para um fim último (o Bem, no caso de
Platão, ou a eudaimonia, no caso de Aristóteles). Já na filosofia moderna,
especialmente em Kant, a ética não se baseia em uma finalidade externa, mas em
princípios formais e universais da razão.
2. Objetividade Metafísica
versus Subjetividade Racional
Enquanto a ética clássica
fundamenta-se em uma ordem objetiva da realidade (a metafísica do ser), a ética
moderna desloca essa fundamentação para a subjetividade racional. Em Kant, a
moralidade não depende do que "é" (ser), mas do que "deve
ser" (dever), conforme determinado pela razão prática.
3. Virtude versus Dever
Na ética clássica, a ênfase
está na formação do caráter virtuoso, desenvolvido ao longo do tempo por meio
de hábitos. Na ética kantiana, o foco está na ação conforme o dever,
independentemente das inclinações ou do caráter do agente.
4. Harmonia com a Natureza
versus Autonomia da Vontade
Para os clássicos, o ser
humano é ético quando vive em harmonia com sua natureza e com a ordem cósmica.
Para Kant, a moralidade é uma questão de autonomia: o indivíduo é ético quando
age de acordo com a lei que ele próprio, enquanto ser racional, legisla.
Conexões e Limites
Apesar das diferenças
marcantes, é possível traçar alguns pontos de continuidade entre as duas
abordagens. Ambas reconhecem a centralidade da razão na ética: enquanto os
clássicos veem a razão como o guia para a virtude, os modernos a veem como o
fundamento da moralidade. Além disso, ambos os paradigmas compartilham a busca
por um fundamento universal para a ética, ainda que divirjam quanto à sua
natureza.
Por outro lado, as críticas a
ambas as perspectivas também são significativas. A ética clássica foi criticada
por sua dependência de uma visão metafísica que nem sempre é compatível com a
ciência moderna. Já a ética kantiana é frequentemente acusada de ser
excessivamente formal e desconectada das complexidades da experiência humana e
das relações sociais.
Considerações Finais
A transição da ética clássica
para a moderna representa uma mudança profunda no modo como os filósofos
entendem a relação entre o homem, a moralidade e o cosmos. Enquanto a filosofia
clássica busca na ordem natural e na finalidade do ser humano o fundamento da
ética, a filosofia moderna encontra esse fundamento na racionalidade e na
autonomia do sujeito.
Esses contrastes não apenas
revelam as transformações do pensamento filosófico ao longo da história, mas
também lançam luz sobre os desafios contemporâneos da ética, que continuam a
oscilar entre visões universalistas e subjetivistas, entre a busca por fundamentos
objetivos e a valorização da liberdade individual. A reflexão sobre ética e a
metafísica dos costumes, portanto, permanece tão relevante hoje quanto era nos
tempos de Platão, Aristóteles e Kant.
[1]
Platão (Atenas 428/427– Atenas, 348/347 a.C.) foi um filósofo e matemático do
período clássico da Grécia Antiga, autor de diversos diálogos filosóficos e
fundador da Academia em Atenas, a primeira instituição de educação superior do
mundo ocidental. Ele é amplamente considerado a figura central na história do
grego antigo e da filosofia ocidental, juntamente com seu mentor, Sócrates, e
seu pupilo, Aristóteles. Platão ajudou a construir os alicerces da filosofia
natural, da ciência e da filosofia ocidental, e também tem sido frequentemente
citado como um dos fundadores da religião ocidental, da ciência e da
espiritualidade.
[2]
A alegoria da caverna, também conhecida como parábola da
caverna, mito da caverna ou prisioneiros da
caverna, é uma alegoria de intenção filósofo-pedagógica, escrita
pelo filósofo grego Platão.
Encontra-se na obra intitulada A
República (Livro VII), e pretende exemplificar como o ser humano
pode se libertar da condição de escuridão, que o aprisiona, por meio da luz
da verdade,
em que o filósofo discute sobre teoria do conhecimento, linguagem, educação
e sobre um estado hipotético.
[3]
Aristóteles (Estagira, 384 a.C. – Atenas, 322 a.C.)
foi um filósofo e polímata da Grécia
Antiga. Ao lado de Platão, de quem foi discípulo na Academia, foi um dos pensadores mais influentes
da história da civilização ocidental. Aristóteles
abordou quase todos os campos do conhecimento de sua época: biologia, física, metafísica, lógica, poética, política, retórica, ética e,
de forma mais marginal, a economia. A filosofia,
definida como "amor à sabedoria", passou a ser compreendida por
Aristóteles em sentido mais amplo, buscando se tornar uma ciência das ciências.
Embora o estagira tenha escrito muitos tratados e
diálogos formatados para a publicação, apenas cerca de um terço de sua produção
original sobreviveu.
[4]
René Descartes (La Haye en Touraine, 31 de março de 1596 – Estocolmo, 11 de
fevereiro de 1650) foi um filósofo, físico e matemático francês.[1] Durante a
Idade Moderna, também era conhecido por seu nome latino Renatus Cartesius. Notabilizou-se
sobretudo por seu trabalho revolucionário na filosofia e na ciência, mas também
obteve reconhecimento matemático por sugerir a fusão da álgebra com a geometria
- fato que gerou a geometria analítica e o sistema de coordenadas que hoje leva
o seu nome. Por fim, foi também uma das figuras-chave na Revolução Científica.
[5]
Immanuel Kant (Königsberg, 22 de abril de 1724 – 12 de fevereiro de 1804) ou Emanuel Kant foi um filósofo alemão (nativo do Reino da Prússia) e um dos principais pensadores do Iluminismo. Seus
abrangentes e sistemáticos trabalhos em epistemologia,
metafísica, ética e
estética tornaram-no uma das figuras mais
influentes da filosofia ocidental moderna. Em sua doutrina do idealismo
transcendental, Kant argumentou que o espaço e o tempo são meras "formas
de intuição" que estruturam toda a experiência e que os objetos da
experiência são meras "aparências". A natureza das coisas como elas é
em si mesmas é incognoscível para nós. Em uma tentativa de contrariar o
ceticismo, ele escreveu a Crítica da Razão Pura (1781/1787), sua obra mais
conhecida. Kant traçou um paralelo com a revolução copernicana em sua proposta
de pensar os objetos dos sentidos em conformidade com nossas formas espaciais e
temporais de intuição e as categorias de nosso entendimento, de modo que
tenhamos conhecimento a priori desses objetos.
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