Por Luis Genaro Ladereche Fígoli (Moshe)
M.´.I.´. Grau 33° REAA
Introdução
A frase “Nunca
conjure[1]
poderes que não podem controlar” ressoa como um aviso antigo, ecoando através
de diversas tradições filosóficas e literárias. Ela nos convida a refletir
sobre os limites do poder humano e as consequências éticas de se aventurar em
territórios além de nossa capacidade de compreensão e controle. A ideia de
“conjurar poderes” não se refere apenas à mágica ou ao sobrenatural, mas
simboliza o uso de qualquer forma de poder que esteja além de nossa competência
ou que possa escapar ao nosso domínio. Essa temática é frequentemente abordada
na filosofia, especialmente na obra de filósofos como Platão , **Nietzschee
**Hannah Arendt ,
Neste artigo,
exploraremos como a filosofia pode iluminar o sentido e a profundidade desse
aforismo, refletindo sobre os perigos de exercer o poder sem a capacidade de
prever ou controlar suas consequências. A partir da filosofia clássica até a
contemporânea, investigaremos as advertências contra o uso irresponsável do
poder e as lições morais extraídas de tais reflexos
O Poder na
Filosofia Clássica: Platão e a Natureza do Domínio
Este é um tema
profundamente abordado nas obras de Platão, especialmente em "A
República". O filósofo discute várias formas de poder e organização
política, procurando a forma ideal de governo, baseada em sua visão de justiça
e o bem comum.
- A República e a Teoria do Governo
Ideal: Platão
propõe a "república", onde o governo é comandado por
"reis-filósofos", aqueles que possuem sabedoria, coragem e
moderação. Ele argumenta que a justiça e o bem comum só seriam plenamente
realizados se o poder estivesse nas mãos dos mais capacitados, que
governariam pela razão e em busca do bem supremo, o "Bem em si"
[4].
- Crítica às Formas Imperfeitas de
Governo: Platão
criticava duramente as formas comuns de governo, como a democracia, a
oligarquia e a tirania, argumentando que todas eram formas degeneradas,
pois não priorizavam o bem da comunidade, mas interesses particulares ou
de grupos minoritários [6].
- A Natureza do Poder e a Ética: Para Platão, o poder deve estar
intrinsecamente ligado à ética, e os governantes deveriam ter como base o
conhecimento do bem, o que evitaria abusos e injustiças [3].
No entanto,
quando o poder é invocado por aqueles que não têm a habilidade de compreendê-lo
— ou, mais perigosamente, de controlá-lo — uma desordem e o caos podem surgir.
Assim, Platão sugere que o verdadeiro perigo está na ignorância dos limites do
conhecimento e do controle
Nietzsche e o
Confronto com o Incontrolável
Friedrich
Nietzsche, um dos filósofos mais influentes do século XIX, é frequentemente
lembrado por suas ideias provocativas sobre moralidade, verdade e a condição
humana. Um tema central em sua obra é o confronto com o incontrolável — a
aceitação da vida em sua totalidade, incluindo suas incertezas, dores e
instabilidades.
1.
A
Vontade de Poder
Nietzsche
introduz o conceito da "vontade de poder", que não se limita a um
mero desejo de dominação, mas representa uma força criativa e afirmativa. Essa
vontade é um impulso fundamental que nos impulsiona a enfrentar e superar as
adversidades da vida. Para Nietzsche, a vida é um campo de batalha onde as
forças do caos e da ordem estão em constante luta. Ao abraçar essa luta, o
indivíduo pode encontrar um sentido mais profundo em sua existência.
2.
O
Eterno Retorno
Outro
aspecto crucial é a ideia do "eterno retorno". Nietzsche propõe um
exercício mental: se você tivesse que viver sua vida repetidamente,
eternamente, cada momento, cada dor e cada alegria, você aceitaria essa
repetição? Essa ideia serve como um teste para a nossa capacidade de abraçar o
incontrolável. A aceitação do eterno retorno é um convite para viver a vida com
intensidade, a partir do reconhecimento de que, mesmo diante do caos, a vida é
digna de ser vivida.
3.
O
Niilismo e a Superação
Nietzsche
também confronta o niilismo, a crença de que a vida não possui sentido
intrínseco. Para ele, o niilismo surge quando os valores tradicionais perdem
seu poder e significado. No entanto, em vez de sucumbir a essa crise, Nietzsche
vê uma oportunidade. A superação do niilismo é um passo essencial para a
criação de novos valores e significados. Essa reinvenção da vida exige coragem
para enfrentar o incontrolável — as incertezas e o sofrimento inerentes à
condição humana.
4.
O
Além do Homem
A
figura do "Além do Homem" (Übermensch) é emblemática na obra
de Nietzsche. Este ideal representa alguém que transcende as limitações humanas
e as convenções sociais, criando seus próprios valores e significados. O Além
do Homem é aquele que, ao confrontar o incontrolável, não se deixa abater pelo
desespero, mas encontra liberdade na aceitação da vida como ela é.
Nietzsche
nos desafia a enfrentar o incontrolável com coragem e criatividade. Em vez de
buscar controle absoluto, ele nos convida a abraçar a incerteza e a
transformação constante da vida. Ao aceitar o caos, podemos descobrir uma nova
forma de viver — uma vida que é não apenas suportável, mas profundamente
significativa. Assim, o filósofo nos oferece uma visão radical: a verdadeira
força reside na capacidade de amar a vida, com todas as suas imperfeições e
desafios.
Assim, Friedrich Nietzsche, oferece uma abordagem mais existencial e desafiadora do poder. Nietzsche propõe que, embora os indivíduos devam buscar superar suas limitações e exercer seu poder sobre o mundo, devem fazê-lo com plena consciência das consequências. A "morte de Deus" na filosofia nietzschiana simboliza o colapso das antigas estruturas morais e a necessidade de criar novos valores. No entanto, essa criação exige responsabilidade, pois o poder sem controle, ou sem responsabilidade, pode levar à destruição. Assim, para Nietzsche, uma advertência seria: exerça o poder, mas saiba que você está sempre em risco de ser dominado por ele, caso o perca.
Hannah Arendt
e o Poder Político:
Hannah Arendt,
uma das mais influentes pensadoras do século XX, dedicou grande parte de sua
obra à análise da política, da autoridade e do poder. Sua concepção de poder
político se destaca por ser profundamente distinta das abordagens convencionais
que costumam associá-lo à dominação, à força ou à coerção. Para Arendt, o poder
tem uma natureza essencialmente positiva, e não violenta, estando intimamente
ligado à capacidade humana de agir em conjunto, de maneira deliberada e
consensual, na esfera pública.
1.
O
Poder como Ação Coletiva
Arendt
concebe o poder como algo que surge entre as pessoas quando elas se reúnem para
agir em comum em prol de um objetivo compartilhado. O poder, nesse sentido, é o
produto da ação coletiva, e não pode ser possuído ou exercido por um indivíduo
isoladamente. Ele se manifesta somente na interação e desaparece no momento em
que essa interação cessa. Como ela escreve em sua obra A Condição Humana,
"o poder nunca é uma propriedade individual; pertence a um grupo e
continua a existir apenas enquanto o grupo se mantém unido."
Essa
visão arendtiana do poder político desafia a tradicional associação entre poder
e violência. Para Arendt, a violência é uma forma de poder degenerado, usada
apenas quando o verdadeiro poder — que depende da comunicação e do consenso —
entra em colapso. A violência, portanto, não é uma demonstração de poder, mas
de sua ausência. Assim, o poder autêntico reside na capacidade das pessoas de
agirem juntas e deliberarem livremente sobre o que é de interesse comum.
2.
Poder
e Espaço Público
Outro
ponto central no pensamento de Arendt é a importância do espaço público como o
local onde o poder político se manifesta e se exerce. O espaço público, para
Arendt, não é apenas um local físico, mas um espaço de discurso e de ação onde
as pessoas aparecem umas para as outras, interagem e discutem as questões que
afetam a comunidade como um todo. O poder político, então, depende da
existência e da vitalidade desse espaço público, que permite o surgimento de
uma esfera onde a ação e a fala se tornam significativas.
Em
sua visão, a modernidade trouxe uma espécie de privatização da vida pública,
com a emergência de formas de governança tecnocráticas que marginalizam a
participação ativa dos cidadãos. O poder, nesse contexto, se distancia da
esfera pública e passa a ser confundido com a administração burocrática, o que,
para Arendt, é um dos grandes perigos para a vitalidade das democracias.
3.
Poder
e Autoridade
Arendt
distingue ainda o poder da autoridade. Enquanto o poder nasce da ação coletiva
e do consenso, a autoridade se relaciona mais com a obediência que os
governados prestam a uma ordem ou instituição legítima. A autoridade, na visão
de Arendt, requer uma relação de reconhecimento mútuo entre os que governam e
os que são governados, algo que está além da mera imposição da força ou do
medo. O colapso da autoridade, segundo Arendt, é uma das causas centrais da
crise política que ela observa no mundo moderno, já que a autoridade, quando
legítima, assegura estabilidade e ordem sem precisar recorrer à violência.
4.
A
Fragilidade do Poder
Para
Arendt, o poder é, por sua própria natureza, efêmero e frágil. Ele depende de
condições que podem desaparecer a qualquer momento, como o consenso entre os
cidadãos, a confiança nas instituições e a disposição para o diálogo. A
manutenção do poder exige uma constante renovação do pacto entre as pessoas, o
que demanda vigilância e participação contínua na vida política. Esse caráter
temporário e precário do poder, no entanto, não é visto de maneira negativa por
Arendt; ao contrário, ela valoriza essa fluidez porque considera que é o que
permite a liberdade política e a renovação democrática.
A
concepção de poder político de Hannah Arendt é uma crítica tanto à tradição
autoritária quanto à tecnocrática de se entender a política. Ao destacar o
papel da ação coletiva e do espaço público, ela nos lembra que o poder, longe
de ser um instrumento de dominação, é um fenômeno que depende da participação
ativa e livre dos cidadãos. Ao enfatizar a fragilidade do poder, Arendt alerta
para os perigos da apatia política e da perda de espaços de participação
pública, que são essenciais para a saúde das democracias.
Arendt, ao
refletir sobre os regimes totalitários, alerta para os perigos do poder
absoluto, que escapam ao controle e à responsabilidade coletiva. A partir da
análise de sistemas como o nazismo e o stalinismo, ela argumenta que o maior
erro é invocar poderes que não podem ser controlados, resultando em regimes
tirânicos onde o poder se torna uma força destrutiva em vez de criadora. Para
Arendt, conjurar poderes sem a devida responsabilização e o controle ético é o
caminho para a desumanização e a catástrofe.
“Hybris” na
Tragédia Grega e na Filosofia Ética
O conceito de “Hybris”[2] na
tragédia grega é profundamente ligado à ideia de transgressão dos limites
impostos pelos deuses, pelo destino e pelas normas sociais. Nas peças de
grandes dramaturgos como Ésquilo, Sófocles e Eurípides, a “Hybris” é
frequentemente a característica fatal que leva o herói trágico à sua queda. Ela
é uma manifestação de orgulho ou arrogância excessiva, na qual o indivíduo
desafia os deuses ou as leis naturais, acreditando poder ultrapassar sua
condição humana. Essa falha, no entanto, invariavelmente resulta em punição,
como parte da ordem cósmica da justiça, ou diké, restabelecendo o equilíbrio
violado pela presunção humana.
Na tragédia, a “Hybris”
não é apenas um comportamento individual, mas um símbolo da tensão entre o
homem e o divino, ou entre o homem e a ordem moral do universo. O exemplo
clássico de “Hybris” pode ser visto na peça Édipo Rei, de Sófocles, onde Édipo,
apesar de seus esforços para escapar de seu destino, acaba cumprindo a profecia
que tentou evitar, cegado por sua própria confiança e incapacidade de perceber
suas limitações humanas.
A “Hybris”,
nesse contexto, envolve um excesso de confiança que desconsidera a fragilidade
da condição humana e as forças inevitáveis do destino. Outro exemplo é
Prometeu, que, em sua rebeldia contra Zeus ao roubar o fogo dos deuses para
entregá-lo à humanidade, sofre consequências eternas por seu ato de
insubordinação. Na tragédia grega, portanto, a “Hybris” é punida não apenas por
desrespeitar os deuses, mas por desestabilizar a ordem moral e cósmica que rege
o mundo.
1.
““Hybris””
e a Filosofia Ética
Na
filosofia ética, o conceito de “Hybris” ganha uma interpretação mais ampla e
refinada, especialmente quando considerado dentro da tradição aristotélica.
Aristóteles, em sua obra Ética a Nicômaco, não utiliza diretamente o termo “Hybris”,
mas desenvolve a ideia do "meio-termo" (mesotes), o equilíbrio que
evita os extremos, como o excesso de orgulho ou a submissão completa. Ele
sugere que a virtude está em encontrar o equilíbrio entre a falta e o excesso
em todas as ações e emoções humanas.
A “Hybris”, nesse sentido, pode ser entendida como a
violação desse princípio aristotélico de equilíbrio. O indivíduo que se
comporta de maneira arrogante, acreditando ser superior aos outros e às regras
naturais ou morais que governam a vida em sociedade, está fora de equilíbrio.
Essa desmesura leva ao vício, à desordem interna e externa, tanto para o
indivíduo quanto para a comunidade. A ética aristotélica, portanto, sugere que
o indivíduo virtuoso é aquele que reconhece e respeita seus limites, agindo de
maneira justa e equilibrada.
Na tradição posterior, especialmente com a filosofia
moderna e contemporânea, o conceito de “Hybris” se desloca para o campo da
ética existencial e humanista, representando o orgulho humano em relação à
capacidade de controlar e transformar o mundo. Na filosofia de Friedrich
Nietzsche, por exemplo, a ideia de übermensch (super-homem) é uma reinterpretação
da “Hybris” em um sentido positivo, onde o indivíduo busca transcender as
limitações impostas por normas morais tradicionais e se afirmar como criador de
novos valores. No entanto, essa transcendência está sujeita aos riscos da
alienação e do isolamento moral.
Já em Kant, a ética gira em torno do respeito à lei moral e
à dignidade humana. Qualquer comportamento que sugira uma arrogância moral, no
sentido de acreditar que se pode escapar das leis morais universais que se
aplicam igualmente a todos, pode ser visto como uma forma de “Hybris”. Kant
defendia que a razão prática deve sempre respeitar os limites éticos, e a “Hybris”
seria a transgressão desses limites em favor de desejos ou interesses egoístas.
Em suma, tanto
na tragédia grega quanto na filosofia ética, a “Hybris” está relacionada a uma
transgressão dos limites que governam a conduta humana. Na tragédia, esse
conceito está fortemente vinculado ao destino e às leis divinas, enquanto na
ética filosófica ele se traduz em termos de equilíbrio, respeito às normas morais
e aos limites impostos pela razão e pela natureza humana. Em ambos os
contextos, a “Hybris” serve como um lembrete da vulnerabilidade humana diante
das forças superiores, sejam elas divinas, cósmicas ou morais. A busca por
reconhecer e respeitar esses limites é central tanto para a tragédia quanto
para a reflexão ética
Conclusão
O tema
"Nunca conjure poderes que não podem controlar" carrega uma profunda
advertência filosófica. Ao longo da história, filósofos como Platão, Nietzsche
e Arendt nos lembram dos perigos de exercer o poder sem a devida sabedoria,
controle ou responsabilidade. Seja no contexto político, pessoal ou
existencial, a mensagem é clara: o poder sem controle é uma força destrutiva.
Conjurar poderes que não compreendemos totalmente, seja por ignorância ou
arrogância, é caminhar rumo ao caos. Assim, a filosofia nos convida a uma
reflexão constante sobre os limites do nosso domínio e as consequências de
ultrapassar
Referências
Platão, A
República .
Nietzsche,
Friedrich. Assim Falou Zaratustra .
ARENDT, Hannah.
A Condição Humana .
Aristóteles,
Ética a Nicômaco
brasilescola.uol.com.br
- Platão: resumo, quem foi, obras, ideias e frases
passeidireto.com - APOL 4 - INTRODUÇÃO GERAL À FILOSOFIA
jusbrasil.com.br - A Ética e Filosofia de Platão
fasbam.edu.br - O Conceito de Bem segundo Platão
indexlaw.org - DIREITO E FILOSOFIA POLÍTICA EM PLATÃO E ...
[1]
Conjurar: verbo transitivo direto Maquina, armar de maneira conspiratória:
conjurou um crime. Invocar; chamar algo ou alguém: conjurou os maus espíritos.
Distanciar um perigo, um medo ou um mal; exorcizar: conjurou as forças
maléficas.
[2]
Hybris: Termo de origem grega que significa “arrogância funesta ou orgulho.Apesar
dos incontáveis avisos, a hybris é o que leva o herói a agir de tal forma, que
provoca e desperta a ira dos deuses.
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