terça-feira, 24 de dezembro de 2024

DEUS É MASCULINO? REFLEXÕES FILOSÓFICAS, ANTROPOLÓGICAS E TEOLÓGICAS.

DEUS É MASCULINO? REFLEXÕES FILOSÓFICAS, ANTROPOLÓGICAS E TEOLÓGICAS.

Por M.´.I.´. Luis Genaro L. Figoli (Moshe)

G.´. 33°


 

A ideia de Deus como uma figura masculina tem sido predominante em muitas tradições religiosas ao longo da história. Essa representação não é simplesmente fruto de uma visão casual, mas o resultado de um complexo entrelaçamento de fatores culturais, históricos e teológicos. Este artigo investiga por que, em diversas tradições religiosas, Deus é concebido como masculino, usando perspectivas filosóficas, antropológicas e teológicas, com o suporte de citações e referências bibliográficas.

 

1. Origens Históricas e Antropológicas

Historicamente, a predominância de sociedades patriarcais foi um fator determinante para a masculinização da figura divina. Em culturas antigas, o poder e a autoridade eram frequentemente associados ao homem, enquanto a mulher era vinculada a funções reprodutivas e domésticas. Essa divisão de papéis foi refletida nas mitologias e nas religiões.

Segundo o antropólogo Clifford Geertz, a religião é "um sistema de símbolos que atua para estabelecer estados de ânimo e motivações poderosas e duradouras nos homens" (Geertz, 1973). Em sociedades patriarcais, os símbolos religiosos frequentemente reforçam a estrutura hierárquica existente, incluindo a associação da divindade suprema com características masculinas, como força, autoridade e racionalidade.

Além disso, em muitas civilizações antigas, os deuses masculinos eram retratados como guerreiros ou criadores, enquanto as deusas femininas eram associadas à fertilidade e à natureza. O filósofo e historiador Mircea Eliade argumenta que "as representações de divindades masculinas como criadores e legisladores refletem as estruturas sociais e políticas de suas respectivas culturas" (Eliade, 1957).

 

2. A Teologia e a Masculinidade de Deus

Teologicamente, a masculinização de Deus é evidente em tradições monoteístas como o cristianismo, o judaísmo e o islamismo. Nessas religiões, Deus é frequentemente referido como "Pai". No cristianismo, por exemplo, Jesus Cristo chama Deus de "Pai" em diversas passagens do Novo Testamento, como em Mateus 6:9: "Pai nosso, que estás nos céus". Essa linguagem reflete não apenas uma relação de proximidade e cuidado, mas também a autoridade patriarcal.

Segundo o teólogo Karl Barth, "a masculinidade de Deus nas Escrituras não implica que Ele seja literalmente homem ou masculino, mas reflete a relação de Deus com a humanidade em termos de autoridade e iniciativa" (Barth, 1956). Para Barth, o uso de termos masculinos como "Pai" e "Senhor" é mais simbólico do que ontológico, significando o papel de Deus como criador e governante.

No entanto, a teóloga feminista Elizabeth Johnson critica essa visão, argumentando que "a linguagem exclusivamente masculina para Deus limita a compreensão humana da divindade e perpetua estruturas patriarcais" (Johnson, 1992). Johnson propõe a inclusão de metáforas femininas e neutras para Deus, a fim de refletir a totalidade do mistério divino.

 

3. A Filosofia e as Representações de Gênero em Deus

Do ponto de vista filosófico, a questão da masculinidade de Deus está ligada à linguagem e aos conceitos humanos de transcendência. Como apontado por Ludwig Feuerbach, "Deus é a projeção das qualidades humanas idealizadas" (Feuerbach, 1841). Em sociedades patriarcais, é natural que essas qualidades idealizadas sejam associadas ao masculino.

A filósofa Simone de Beauvoir, em sua obra O Segundo Sexo, argumenta que "o homem foi historicamente elevado à posição de sujeito universal, enquanto a mulher é relegada ao 'outro'" (Beauvoir, 1949). Essa percepção se reflete na representação masculina de Deus, que é visto como o sujeito criador e transcendental.

Já o filósofo Paul Tillich aborda a questão de maneira mais simbólica. Para Tillich, Deus está "além do gênero", mas a linguagem humana é limitada e recorre a metáforas masculinas porque elas foram historicamente associadas ao poder e à autoridade (Tillich, 1951).

 

4. Questionamentos e Reformulações Contemporâneas

Nos últimos séculos, teólogos, filósofos e antropólogos têm questionado a exclusividade da masculinidade de Deus. Movimentos feministas dentro da teologia, como o trabalho de Rosemary Radford Ruether, defendem que "uma verdadeira teologia deve incluir imagens femininas de Deus" (Ruether, 1983). Ruether argumenta que a predominância de imagens masculinas reflete mais as estruturas sociais do que a realidade divina.

Além disso, algumas tradições religiosas não ocidentais oferecem uma perspectiva diferente. No hinduísmo, por exemplo, o divino é frequentemente representado tanto em formas masculinas quanto femininas, como Shiva e Shakti, que simbolizam a complementaridade entre os gêneros.

 

5. Onde se encontra a mulher na trindade cristã?

Na teologia cristã tradicional, a Trindade é composta por três pessoas divinas: Pai, Filho e Espírito Santo. Esses são geralmente descritos em termos de uma relação espiritual, e não biológica ou de gênero humano. Contudo, a questão de onde a mulher é representada ou se encontra na Trindade tem sido objeto de reflexão teológica, espiritual e cultural ao longo dos séculos.

 

a. A Trindade não é propriamente "masculina"

Embora o cristianismo frequentemente use termos masculinos para descrever as pessoas da Trindade (Deus Pai, Deus Filho e o Espírito Santo, que muitas vezes é referido com pronomes masculinos em línguas como o português), Deus não é limitado por gênero humano. Teologicamente, Deus transcende categorias como masculino ou feminino, sendo "espírito" (João 4:24).

 

Deus Pai: A linguagem de "Pai" é simbólica e relacional, indicando proximidade e cuidado paternal, mas não implica gênero biológico.

Jesus Cristo: Como a encarnação do Filho, Jesus foi historicamente homem, mas em sua divindade, Ele também transcende o gênero.

Espírito Santo: Em algumas tradições cristãs, o Espírito Santo é associado a qualidades tradicionalmente consideradas "femininas", como consolo, nutrição e sabedoria.

 

2. Representações femininas de Deus na tradição bíblica

A Bíblia tem passagens que associam características divinas a imagens femininas, especialmente no que diz respeito ao cuidado e ao amor maternal. Alguns exemplos incluem:

Isaías 66:13: "Como alguém a quem sua mãe consola, assim eu os consolarei."

Deuteronômio 32:18: Deus é descrito como aquele que "dá à luz" o povo de Israel.

Mateus 23:37: Jesus compara seu desejo de proteger Jerusalém à ação de uma galinha que reúne seus pintinhos debaixo das asas.

Esses textos mostram que Deus é compreendido tanto em termos paternais quanto maternais, o que sugere que a plenitude de Deus inclui aspectos tradicionalmente atribuídos a ambos os gêneros.

 

c. Maria e a representação feminina no cristianismo

No cristianismo, especialmente nas tradições católica e ortodoxa, Maria, mãe de Jesus, ocupa um papel central como a figura feminina mais exaltada. Embora não faça parte da Trindade, Maria é frequentemente vista como uma ponte simbólica para a experiência feminina na fé cristã.

 

Maria é chamada de "Mãe de Deus" (Theotokos) por ser a mãe de Jesus Cristo, o Filho de Deus.

Sua humildade, obediência e maternidade são exaltadas como virtudes, e ela é vista como intercessora e modelo para os cristãos.

 

d. O Espírito Santo e a Sabedoria (Sophia)

Em algumas tradições cristãs, especialmente na mística e na teologia oriental, o Espírito Santo é associado à Sabedoria Divina (em grego, "Sophia"). A Sabedoria é, em alguns textos bíblicos, personificada no feminino, como em Provérbios 8:

"A Sabedoria clama em alta voz; nas ruas levanta a sua voz" (Provérbios 8:1).

Essa personificação feminina tem sido interpretada por alguns teólogos como uma representação do aspecto feminino de Deus.

 

e. A mulher e a Imago Dei

Na teologia cristã, homens e mulheres são igualmente criados à imagem e semelhança de Deus (Imago Dei), conforme Gênesis 1:27:

"Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou."

Isso implica que, em Deus, tanto o masculino quanto o feminino têm sua origem e reflexo. Portanto, a mulher está plenamente incluída na essência divina e na relação com Deus.

 

Embora a Trindade cristã não seja explicitamente associada ao feminino, Deus é entendido como transcendente ao gênero, e atributos tradicionalmente femininos (como cuidado, compaixão e sabedoria) são aplicados a Ele em várias passagens bíblicas. Além disso, figuras como Maria e a Sabedoria Divina (Sophia) desempenham papéis significativos para representar aspectos femininos da fé cristã. Assim, a mulher encontra-se plenamente integrada na relação com Deus e na reflexão teológica cristã.

Conclusão

A masculinidade de Deus é um reflexo das estruturas sociais, linguísticas e culturais que moldaram as tradições religiosas ao longo da história. Embora a representação masculina de Deus tenha sido predominante em muitas culturas, é importante reconhecer que essa visão não é universal nem imutável. O debate contemporâneo sobre o gênero de Deus desafia as noções tradicionais e busca desenvolver uma compreensão mais inclusiva e abrangente do divino.

 

Referências

Barth, Karl. Church Dogmatics. T&T Clark, 1956.

Beauvoir, Simone de. O Segundo Sexo. Gallimard, 1949.

Eliade, Mircea. The Sacred and the Profane. Harcourt, 1957.

Feuerbach, Ludwig. The Essence of Christianity. Harper, 1841.

Geertz, Clifford. The Interpretation of Cultures. Basic Books, 1973.

Johnson, Elizabeth A. She Who Is: The Mystery of God in Feminist Theological Discourse. Crossroad, 1992.

Ruether, Rosemary Radford. Sexism and God-Talk: Toward a Feminist Theology. Beacon Press, 1983.

Tillich, Paul. Systematic Theology. University of Chicago Press, 1951.

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