sexta-feira, 20 de setembro de 2024

NUNCA CONJURE PODERES QUE NÃO PODEM CONTROLAR: REFLEXÕES FILOSÓFICAS SOBRE O DOMÍNIO E A RESPONSABILIDADE

 


Por Luis Genaro Ladereche Fígoli (Moshe)

M.´.I.´. Grau 33° REAA

 

Introdução

A frase “Nunca conjure[1] poderes que não podem controlar” ressoa como um aviso antigo, ecoando através de diversas tradições filosóficas e literárias. Ela nos convida a refletir sobre os limites do poder humano e as consequências éticas de se aventurar em territórios além de nossa capacidade de compreensão e controle. A ideia de “conjurar poderes” não se refere apenas à mágica ou ao sobrenatural, mas simboliza o uso de qualquer forma de poder que esteja além de nossa competência ou que possa escapar ao nosso domínio. Essa temática é frequentemente abordada na filosofia, especialmente na obra de filósofos como Platão , **Nietzschee **Hannah Arendt ,

Neste artigo, exploraremos como a filosofia pode iluminar o sentido e a profundidade desse aforismo, refletindo sobre os perigos de exercer o poder sem a capacidade de prever ou controlar suas consequências. A partir da filosofia clássica até a contemporânea, investigaremos as advertências contra o uso irresponsável do poder e as lições morais extraídas de tais reflexos

 

O Poder na Filosofia Clássica: Platão e a Natureza do Domínio

Este é um tema profundamente abordado nas obras de Platão, especialmente em "A República". O filósofo discute várias formas de poder e organização política, procurando a forma ideal de governo, baseada em sua visão de justiça e o bem comum.

  1. A República e a Teoria do Governo Ideal: Platão propõe a "república", onde o governo é comandado por "reis-filósofos", aqueles que possuem sabedoria, coragem e moderação. Ele argumenta que a justiça e o bem comum só seriam plenamente realizados se o poder estivesse nas mãos dos mais capacitados, que governariam pela razão e em busca do bem supremo, o "Bem em si" [4].
  2. Crítica às Formas Imperfeitas de Governo: Platão criticava duramente as formas comuns de governo, como a democracia, a oligarquia e a tirania, argumentando que todas eram formas degeneradas, pois não priorizavam o bem da comunidade, mas interesses particulares ou de grupos minoritários [6].
  3. A Natureza do Poder e a Ética: Para Platão, o poder deve estar intrinsecamente ligado à ética, e os governantes deveriam ter como base o conhecimento do bem, o que evitaria abusos e injustiças [3].

No entanto, quando o poder é invocado por aqueles que não têm a habilidade de compreendê-lo — ou, mais perigosamente, de controlá-lo — uma desordem e o caos podem surgir. Assim, Platão sugere que o verdadeiro perigo está na ignorância dos limites do conhecimento e do controle

 

Nietzsche e o Confronto com o Incontrolável

Friedrich Nietzsche, um dos filósofos mais influentes do século XIX, é frequentemente lembrado por suas ideias provocativas sobre moralidade, verdade e a condição humana. Um tema central em sua obra é o confronto com o incontrolável — a aceitação da vida em sua totalidade, incluindo suas incertezas, dores e instabilidades.

1.    A Vontade de Poder

Nietzsche introduz o conceito da "vontade de poder", que não se limita a um mero desejo de dominação, mas representa uma força criativa e afirmativa. Essa vontade é um impulso fundamental que nos impulsiona a enfrentar e superar as adversidades da vida. Para Nietzsche, a vida é um campo de batalha onde as forças do caos e da ordem estão em constante luta. Ao abraçar essa luta, o indivíduo pode encontrar um sentido mais profundo em sua existência.

2.    O Eterno Retorno

Outro aspecto crucial é a ideia do "eterno retorno". Nietzsche propõe um exercício mental: se você tivesse que viver sua vida repetidamente, eternamente, cada momento, cada dor e cada alegria, você aceitaria essa repetição? Essa ideia serve como um teste para a nossa capacidade de abraçar o incontrolável. A aceitação do eterno retorno é um convite para viver a vida com intensidade, a partir do reconhecimento de que, mesmo diante do caos, a vida é digna de ser vivida.

3.    O Niilismo e a Superação

Nietzsche também confronta o niilismo, a crença de que a vida não possui sentido intrínseco. Para ele, o niilismo surge quando os valores tradicionais perdem seu poder e significado. No entanto, em vez de sucumbir a essa crise, Nietzsche vê uma oportunidade. A superação do niilismo é um passo essencial para a criação de novos valores e significados. Essa reinvenção da vida exige coragem para enfrentar o incontrolável — as incertezas e o sofrimento inerentes à condição humana.

4.    O Além do Homem

A figura do "Além do Homem" (Übermensch) é emblemática na obra de Nietzsche. Este ideal representa alguém que transcende as limitações humanas e as convenções sociais, criando seus próprios valores e significados. O Além do Homem é aquele que, ao confrontar o incontrolável, não se deixa abater pelo desespero, mas encontra liberdade na aceitação da vida como ela é.

Nietzsche nos desafia a enfrentar o incontrolável com coragem e criatividade. Em vez de buscar controle absoluto, ele nos convida a abraçar a incerteza e a transformação constante da vida. Ao aceitar o caos, podemos descobrir uma nova forma de viver — uma vida que é não apenas suportável, mas profundamente significativa. Assim, o filósofo nos oferece uma visão radical: a verdadeira força reside na capacidade de amar a vida, com todas as suas imperfeições e desafios.

Assim, Friedrich Nietzsche, oferece uma abordagem mais existencial e desafiadora do poder. Nietzsche propõe que, embora os indivíduos devam buscar superar suas limitações e exercer seu poder sobre o mundo, devem fazê-lo com plena consciência das consequências. A "morte de Deus" na filosofia nietzschiana simboliza o colapso das antigas estruturas morais e a necessidade de criar novos valores. No entanto, essa criação exige responsabilidade, pois o poder sem controle, ou sem responsabilidade, pode levar à destruição. Assim, para Nietzsche, uma advertência seria: exerça o poder, mas saiba que você está sempre em risco de ser dominado por ele, caso o perca.

 


Hannah Arendt e o Poder Político:

Hannah Arendt, uma das mais influentes pensadoras do século XX, dedicou grande parte de sua obra à análise da política, da autoridade e do poder. Sua concepção de poder político se destaca por ser profundamente distinta das abordagens convencionais que costumam associá-lo à dominação, à força ou à coerção. Para Arendt, o poder tem uma natureza essencialmente positiva, e não violenta, estando intimamente ligado à capacidade humana de agir em conjunto, de maneira deliberada e consensual, na esfera pública.

1.    O Poder como Ação Coletiva

Arendt concebe o poder como algo que surge entre as pessoas quando elas se reúnem para agir em comum em prol de um objetivo compartilhado. O poder, nesse sentido, é o produto da ação coletiva, e não pode ser possuído ou exercido por um indivíduo isoladamente. Ele se manifesta somente na interação e desaparece no momento em que essa interação cessa. Como ela escreve em sua obra A Condição Humana, "o poder nunca é uma propriedade individual; pertence a um grupo e continua a existir apenas enquanto o grupo se mantém unido."

Essa visão arendtiana do poder político desafia a tradicional associação entre poder e violência. Para Arendt, a violência é uma forma de poder degenerado, usada apenas quando o verdadeiro poder — que depende da comunicação e do consenso — entra em colapso. A violência, portanto, não é uma demonstração de poder, mas de sua ausência. Assim, o poder autêntico reside na capacidade das pessoas de agirem juntas e deliberarem livremente sobre o que é de interesse comum.

2.    Poder e Espaço Público

Outro ponto central no pensamento de Arendt é a importância do espaço público como o local onde o poder político se manifesta e se exerce. O espaço público, para Arendt, não é apenas um local físico, mas um espaço de discurso e de ação onde as pessoas aparecem umas para as outras, interagem e discutem as questões que afetam a comunidade como um todo. O poder político, então, depende da existência e da vitalidade desse espaço público, que permite o surgimento de uma esfera onde a ação e a fala se tornam significativas.

Em sua visão, a modernidade trouxe uma espécie de privatização da vida pública, com a emergência de formas de governança tecnocráticas que marginalizam a participação ativa dos cidadãos. O poder, nesse contexto, se distancia da esfera pública e passa a ser confundido com a administração burocrática, o que, para Arendt, é um dos grandes perigos para a vitalidade das democracias.

3.    Poder e Autoridade

Arendt distingue ainda o poder da autoridade. Enquanto o poder nasce da ação coletiva e do consenso, a autoridade se relaciona mais com a obediência que os governados prestam a uma ordem ou instituição legítima. A autoridade, na visão de Arendt, requer uma relação de reconhecimento mútuo entre os que governam e os que são governados, algo que está além da mera imposição da força ou do medo. O colapso da autoridade, segundo Arendt, é uma das causas centrais da crise política que ela observa no mundo moderno, já que a autoridade, quando legítima, assegura estabilidade e ordem sem precisar recorrer à violência.

4.    A Fragilidade do Poder

Para Arendt, o poder é, por sua própria natureza, efêmero e frágil. Ele depende de condições que podem desaparecer a qualquer momento, como o consenso entre os cidadãos, a confiança nas instituições e a disposição para o diálogo. A manutenção do poder exige uma constante renovação do pacto entre as pessoas, o que demanda vigilância e participação contínua na vida política. Esse caráter temporário e precário do poder, no entanto, não é visto de maneira negativa por Arendt; ao contrário, ela valoriza essa fluidez porque considera que é o que permite a liberdade política e a renovação democrática.

A concepção de poder político de Hannah Arendt é uma crítica tanto à tradição autoritária quanto à tecnocrática de se entender a política. Ao destacar o papel da ação coletiva e do espaço público, ela nos lembra que o poder, longe de ser um instrumento de dominação, é um fenômeno que depende da participação ativa e livre dos cidadãos. Ao enfatizar a fragilidade do poder, Arendt alerta para os perigos da apatia política e da perda de espaços de participação pública, que são essenciais para a saúde das democracias.

Arendt, ao refletir sobre os regimes totalitários, alerta para os perigos do poder absoluto, que escapam ao controle e à responsabilidade coletiva. A partir da análise de sistemas como o nazismo e o stalinismo, ela argumenta que o maior erro é invocar poderes que não podem ser controlados, resultando em regimes tirânicos onde o poder se torna uma força destrutiva em vez de criadora. Para Arendt, conjurar poderes sem a devida responsabilização e o controle ético é o caminho para a desumanização e a catástrofe.

 

Hybris” na Tragédia Grega e na Filosofia Ética

O conceito de “Hybris”[2] na tragédia grega é profundamente ligado à ideia de transgressão dos limites impostos pelos deuses, pelo destino e pelas normas sociais. Nas peças de grandes dramaturgos como Ésquilo, Sófocles e Eurípides, a “Hybris” é frequentemente a característica fatal que leva o herói trágico à sua queda. Ela é uma manifestação de orgulho ou arrogância excessiva, na qual o indivíduo desafia os deuses ou as leis naturais, acreditando poder ultrapassar sua condição humana. Essa falha, no entanto, invariavelmente resulta em punição, como parte da ordem cósmica da justiça, ou diké, restabelecendo o equilíbrio violado pela presunção humana.

Na tragédia, a “Hybris” não é apenas um comportamento individual, mas um símbolo da tensão entre o homem e o divino, ou entre o homem e a ordem moral do universo. O exemplo clássico de “Hybris” pode ser visto na peça Édipo Rei, de Sófocles, onde Édipo, apesar de seus esforços para escapar de seu destino, acaba cumprindo a profecia que tentou evitar, cegado por sua própria confiança e incapacidade de perceber suas limitações humanas.

A “Hybris”, nesse contexto, envolve um excesso de confiança que desconsidera a fragilidade da condição humana e as forças inevitáveis do destino. Outro exemplo é Prometeu, que, em sua rebeldia contra Zeus ao roubar o fogo dos deuses para entregá-lo à humanidade, sofre consequências eternas por seu ato de insubordinação. Na tragédia grega, portanto, a “Hybris” é punida não apenas por desrespeitar os deuses, mas por desestabilizar a ordem moral e cósmica que rege o mundo.

1.    ““Hybris”” e a Filosofia Ética

Na filosofia ética, o conceito de “Hybris” ganha uma interpretação mais ampla e refinada, especialmente quando considerado dentro da tradição aristotélica. Aristóteles, em sua obra Ética a Nicômaco, não utiliza diretamente o termo “Hybris”, mas desenvolve a ideia do "meio-termo" (mesotes), o equilíbrio que evita os extremos, como o excesso de orgulho ou a submissão completa. Ele sugere que a virtude está em encontrar o equilíbrio entre a falta e o excesso em todas as ações e emoções humanas.

A “Hybris”, nesse sentido, pode ser entendida como a violação desse princípio aristotélico de equilíbrio. O indivíduo que se comporta de maneira arrogante, acreditando ser superior aos outros e às regras naturais ou morais que governam a vida em sociedade, está fora de equilíbrio. Essa desmesura leva ao vício, à desordem interna e externa, tanto para o indivíduo quanto para a comunidade. A ética aristotélica, portanto, sugere que o indivíduo virtuoso é aquele que reconhece e respeita seus limites, agindo de maneira justa e equilibrada.

Na tradição posterior, especialmente com a filosofia moderna e contemporânea, o conceito de “Hybris” se desloca para o campo da ética existencial e humanista, representando o orgulho humano em relação à capacidade de controlar e transformar o mundo. Na filosofia de Friedrich Nietzsche, por exemplo, a ideia de übermensch (super-homem) é uma reinterpretação da “Hybris” em um sentido positivo, onde o indivíduo busca transcender as limitações impostas por normas morais tradicionais e se afirmar como criador de novos valores. No entanto, essa transcendência está sujeita aos riscos da alienação e do isolamento moral.

Já em Kant, a ética gira em torno do respeito à lei moral e à dignidade humana. Qualquer comportamento que sugira uma arrogância moral, no sentido de acreditar que se pode escapar das leis morais universais que se aplicam igualmente a todos, pode ser visto como uma forma de “Hybris”. Kant defendia que a razão prática deve sempre respeitar os limites éticos, e a “Hybris” seria a transgressão desses limites em favor de desejos ou interesses egoístas.

Em suma, tanto na tragédia grega quanto na filosofia ética, a “Hybris” está relacionada a uma transgressão dos limites que governam a conduta humana. Na tragédia, esse conceito está fortemente vinculado ao destino e às leis divinas, enquanto na ética filosófica ele se traduz em termos de equilíbrio, respeito às normas morais e aos limites impostos pela razão e pela natureza humana. Em ambos os contextos, a “Hybris” serve como um lembrete da vulnerabilidade humana diante das forças superiores, sejam elas divinas, cósmicas ou morais. A busca por reconhecer e respeitar esses limites é central tanto para a tragédia quanto para a reflexão ética

 

Conclusão

O tema "Nunca conjure poderes que não podem controlar" carrega uma profunda advertência filosófica. Ao longo da história, filósofos como Platão, Nietzsche e Arendt nos lembram dos perigos de exercer o poder sem a devida sabedoria, controle ou responsabilidade. Seja no contexto político, pessoal ou existencial, a mensagem é clara: o poder sem controle é uma força destrutiva. Conjurar poderes que não compreendemos totalmente, seja por ignorância ou arrogância, é caminhar rumo ao caos. Assim, a filosofia nos convida a uma reflexão constante sobre os limites do nosso domínio e as consequências de ultrapassar

 

Referências

Platão, A República .

Nietzsche, Friedrich. Assim Falou Zaratustra .

ARENDT, Hannah. A Condição Humana .

Aristóteles, Ética a Nicômaco

 brasilescola.uol.com.br - Platão: resumo, quem foi, obras, ideias e frases

 passeidireto.com - APOL 4 - INTRODUÇÃO GERAL À FILOSOFIA

 jusbrasil.com.br - A Ética e Filosofia de Platão

 fasbam.edu.br - O Conceito de Bem segundo Platão

 indexlaw.org - DIREITO E FILOSOFIA POLÍTICA EM PLATÃO E ...

 bbc.com - Qual era a melhor forma de governo para Platão, que fazia .


[1] Conjurar: verbo transitivo direto Maquina, armar de maneira conspiratória: conjurou um crime. Invocar; chamar algo ou alguém: conjurou os maus espíritos. Distanciar um perigo, um medo ou um mal; exorcizar: conjurou as forças maléficas.

[2] Hybris: Termo de origem grega que significa “arrogância funesta ou orgulho.Apesar dos incontáveis avisos, a hybris é o que leva o herói a agir de tal forma, que provoca e desperta a ira dos deuses.

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