Por: Luis Genaro Ladereche Fígoli (Mestre Moshe 33°)
A discussão sobre ética e a
metafísica dos costumes é um dos pilares centrais da filosofia em todas as suas
épocas. Enquanto a filosofia clássica estabeleceu as bases do pensamento ético
a partir de uma perspectiva teleológica e essencialista, a filosofia moderna
propôs um rompimento com essas abordagens, inaugurando uma visão mais
subjetiva, racionalista e universalista. Este artigo analisa os principais
contrastes entre essas duas abordagens, destacando como a visão moderna,
especialmente em Kant, se diferencia da visão clássica representada por
filósofos como Platão e Aristóteles.
A Ética Clássica: Virtude e
Finalidade
Na filosofia clássica, ética e
metafísica estavam intimamente conectadas a uma visão teleológica do mundo.
Para Platão,
a ética estava alicerçada na ideia do “Bem” como a realidade suprema. No mito
da caverna,
por exemplo, o filósofo sugere que o caminho ético é o da ascensão do mundo
sensível ao mundo inteligível, culminando na contemplação do Bem em si. Nesse
contexto, a virtude é a adequação da alma humana à ordem universal, guiada pela
razão.
Aristóteles, por sua vez, desenvolve
uma ética da virtude fundamentada na ideia de que todo ser possui uma
finalidade intrínseca (telos). Para ele, o fim último da vida humana é a
eudaimonia (felicidade ou florescimento), alcançada por meio da prática
das virtudes. Essas virtudes, como a coragem, a prudência e a justiça, são
hábitos que permitem ao indivíduo viver de acordo com sua natureza racional. Na
visão aristotélica, a ética está profundamente ligada à metafísica, pois
compreender a essência e o propósito de algo é essencial para determinar como
ele deve agir.
Em suma, na filosofia
clássica, a ética é objetiva, baseada na ideia de que há uma ordem universal e
natural que define o bem e o mal. O ser humano ético é aquele que harmoniza
suas ações com essa ordem, guiado pela razão e pela busca da virtude.
A Revolução da Filosofia
Moderna: Kant e a Metafísica dos Costumes
Com a modernidade,
especialmente a partir de Descartes, há uma ruptura com a
metafísica clássica. A filosofia moderna desloca o foco da essência das coisas
para o sujeito cognoscente. No campo ético, Immanuel Kant representa a culminação
desse movimento ao propor uma ética fundamentada na razão prática e na
autonomia do sujeito.
Na obra "Fundamentação
da Metafísica dos Costumes", Kant rejeita a ética teleológica e
qualquer sistema ético baseado em consequências ou inclinações. Em vez disso,
ele apresenta o conceito de imperativo categórico, que estabelece que
uma ação é moralmente correta se puder ser universalizada, ou seja, se a máxima
que a orienta puder valer como uma lei universal.
A principal inovação kantiana
é a separação entre ética e qualquer forma de interesse subjetivo ou metafísico
tradicional. Para Kant, a moralidade não deriva de uma ordem cósmica ou de uma
finalidade natural, mas da própria capacidade racional do sujeito de legislar
para si mesmo. A autonomia da vontade é o fundamento da moralidade, e a
liberdade é vista como a capacidade de agir de acordo com a razão, e não com as
inclinações.
Essa abordagem também redefine
a metafísica dos costumes: em vez de buscar um fundamento metafísico na ordem
do cosmos, Kant busca na estrutura da razão humana o princípio universal da
moralidade. Assim, a ética moderna kantiana é formal, universalista e
deontológica, em contraste com a ética substancial e teleológica da filosofia
clássica.
Contrastes Fundamentais
1. Teleologia versus
Universalismo Formal
Na filosofia clássica, a ética
é teleológica, ou seja, está orientada para um fim último (o Bem, no caso de
Platão, ou a eudaimonia, no caso de Aristóteles). Já na filosofia moderna,
especialmente em Kant, a ética não se baseia em uma finalidade externa, mas em
princípios formais e universais da razão.
2. Objetividade Metafísica
versus Subjetividade Racional
Enquanto a ética clássica
fundamenta-se em uma ordem objetiva da realidade (a metafísica do ser), a ética
moderna desloca essa fundamentação para a subjetividade racional. Em Kant, a
moralidade não depende do que "é" (ser), mas do que "deve
ser" (dever), conforme determinado pela razão prática.
3. Virtude versus Dever
Na ética clássica, a ênfase
está na formação do caráter virtuoso, desenvolvido ao longo do tempo por meio
de hábitos. Na ética kantiana, o foco está na ação conforme o dever,
independentemente das inclinações ou do caráter do agente.
4. Harmonia com a Natureza
versus Autonomia da Vontade
Para os clássicos, o ser
humano é ético quando vive em harmonia com sua natureza e com a ordem cósmica.
Para Kant, a moralidade é uma questão de autonomia: o indivíduo é ético quando
age de acordo com a lei que ele próprio, enquanto ser racional, legisla.
Conexões e Limites
Apesar das diferenças
marcantes, é possível traçar alguns pontos de continuidade entre as duas
abordagens. Ambas reconhecem a centralidade da razão na ética: enquanto os
clássicos veem a razão como o guia para a virtude, os modernos a veem como o
fundamento da moralidade. Além disso, ambos os paradigmas compartilham a busca
por um fundamento universal para a ética, ainda que divirjam quanto à sua
natureza.
Por outro lado, as críticas a
ambas as perspectivas também são significativas. A ética clássica foi criticada
por sua dependência de uma visão metafísica que nem sempre é compatível com a
ciência moderna. Já a ética kantiana é frequentemente acusada de ser
excessivamente formal e desconectada das complexidades da experiência humana e
das relações sociais.
Considerações Finais
A transição da ética clássica
para a moderna representa uma mudança profunda no modo como os filósofos
entendem a relação entre o homem, a moralidade e o cosmos. Enquanto a filosofia
clássica busca na ordem natural e na finalidade do ser humano o fundamento da
ética, a filosofia moderna encontra esse fundamento na racionalidade e na
autonomia do sujeito.
Esses contrastes não apenas
revelam as transformações do pensamento filosófico ao longo da história, mas
também lançam luz sobre os desafios contemporâneos da ética, que continuam a
oscilar entre visões universalistas e subjetivistas, entre a busca por fundamentos
objetivos e a valorização da liberdade individual. A reflexão sobre ética e a
metafísica dos costumes, portanto, permanece tão relevante hoje quanto era nos
tempos de Platão, Aristóteles e Kant.
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